segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Amarrado pelo destino

Num desligado desprender de rotina, quando procurava no mundo por ti, agarrado ao destino, encontrei-te.
Num infinito de dias, de minutos e de horas econtrei-te, encontraste-me. Num momento preciso. Num local preciso.
E prendemo-nos. A uma possibilidade, a uma cumplicidade.

Amarrado espero por aquela pálida manhã de Fevereiro com aquela neblina matinal. Vão parecer séculos. É sempre assim, apesar de não o mostrarem nos filmes, quando se espera pelo barco em que vens, em que vem a pessoa de alguém, esse alguém espera, e ansioso fica a ver o barco chegar, atracar, e a neblina com o tempo desaparece e fica um belo dia de Fevereiro. E enquanto os turistas saem e se perdem por Lisboa, sais também. E é estranho.

Tão estranho. Abraçamo-nos. Já sabemos o que existe, esse dia. O nosso belo dia em Fevereiro.
E nunca o sol brilhou tanto em Fevereiro e nunca a chuva caiu tão forte. Nunca a Praça do Comércio esteve tão amarela, nunca sorri tanto, nunca esqueci tanto o mundo.

O dia de Fevereiro precederá o dia seguinte, num outro mês. Nesse mês a Praça do Comércio não estará tão amarela, será mais estranho que em Fevereiro. Precisará cair mais chuva e fazer mais sol. Arriscaremos mais. Mas, e se nos decidirmos em Fevereiro? Se assim for a praça manterá a cor, mas nos entre-dias ficarei atracado num porto Lisboeta, de sonhos e de fado.

Falta tanto para se acabarem os dias.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Clavícula esquerda

Na tua estatura rígida e fria, angulosa e esguia, cravei os meus dedos, fechando os olhos na tua clavícula esquerda.

Quando saímos do táxi, caminhando lentamente para a porta do prédio, refugiei-me num cigarro, adiando a despedida, criando espaço entre nós.

Pensando em como tornar o momento curto, eficaz, suave. Sonhando que podia ignorar, fingir que o amanhã era apenas isso, um sábado como os outros.

Enquanto fumava puxas-me para ti, enquanto falavas e dizias, que dizias tu, a minha cabeça cheia daquele momento pouco deixou ouvir e nada assimilou.

Do que ficou, sei, foi um pedido para que me deixasses acabar o cigarro, mas puxas-me de novo e dizes para me chegar.

A minha tentativa falhada de tornar tudo em algo curto, um mar numa nuvem!

Falhei - quando te senti - a estatura rígida e fria, angulosa e esguia, cravei os meus dedos, fechando os olhos na tua clavícula esquerda.

E ali ficámos até eu me conseguir separar, colocar uma distância - as palavras foram-se na minha cabeça demasiado cheia de tudo o resto para as reter, reter como não me largaste.

See ya.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Andava a lua nos céus




Andava a lua nos céus
Com o seu bando de estrelas
Na minha alcova
Ardiam velas
Em candelabros de bronze
Pelo chão em desalinho
Os veludos pareciam
Ondas de sangue e ondas de vinho
Ele, olhava-me cismando;
E eu,
Plácidamente, fumava,
Vendo a lua branca e nua
Que pelos céus caminhava.
Aproximou-se; e em delírio
Procurou avidamente
E avidamente beijou
A minha boca de cravo
Que a beijar se recusou.
Arrastou-me para ele,
E encostado ao meu hombro
Falou-me de um pagem loiro
Que morrera de saudade
À beira-mar, a cantar…
Olhei o céu!
Agora, a lua, fugia,
Entre nuvens que tornavam
A linda noite sombria.
Deram-se as bocas num beijo,
Um beijo nervoso e lento…
O homem cede ao desejo
Como a nuvem cede ao vento
Vinha longe a madrugada.
Por fim,
Largando esse corpo
Que adormecera cansado
E que eu beijara, loucamente,
Sem sentir,
Bebia vinho, perdidamente
Bebia vinha…, até cair.
POR ANTÓNIO BOTTO Editorial Presença 1999

segunda-feira, 5 de março de 2012

de frofundis amamus

Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria.


Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto  
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
  

O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso


Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós 
mas não te importes 
não te importes
muito 
nós só temos a ver
com o presente 
perfeito 
corsários de olhos de gato intransponível 
maravilhados    maravilhosos    únicos 
nem pretérito nem futuro tem 
o estranho verbo nosso  
                            Mário Cesariny                       

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Escamas e espinhos de obsidiana

(...) Binyamin deixou de sentir. A caruma começou a rarear sob os seus pés de andar leve, os arbustos deixaram de a rodear e viu-se na fronteira de uma praia muito diferente do que conhecia. Não havia dunas, o arvoredo terminava abruptamente num areal extremamente plano, o mar apenas respondia ao clamor do vento naquele estranho mundo privado de lua, mas com uma noite amenizada por uma infinidade de grandes estrelas, ou pequenas, ou simplesmente medianas, mas num céu em que mesmo as mais ínfimas eram absurdamente distinguíveis.

Na infinidade do seu espanto contornou uma dezena de pessoas silenciosas. Moviam-se, mas Binyamin, talvez pela quantidade de informação visual que o seu cérebro estava a processar, não as ouviu. Tudo lhe parecia de um silêncio atroz. No mar viu reflectidas as luzes douradas das velas que aquele grupo desorganizado segurava nas mãos e que contrastavam com o reflexo prateado das estrelas no mar escuro. Apercebeu-se de chegar ao mar sentindo a areia fria entre os seus dedos.

Sobressaltou-se com a interferência fria que se ouviu de um grande aparelho electrónico, um qualquer intercomunicador portátil de onde ouviu uma voz feminina, numa tristeza perdida, numa língua qualquer, perdida de esperança e que lhe pareceu tão distante. Foi quando os viu.

Dois jovens de cabelos curtos e claros, de calças de ganga escura e com os pés na areia, encontravam-se virados um para o outro sem espaço entre si. Um deles (o que Binyamin julgou mais baixo) encontrava-se com os braços dobrados em direcção ao próprio peito, segurando algo que o abraço apertado do outro rapaz não deixava adivinhar. Separaram-se no momento em que uma menina se agarrou à sua perna. Binyamin sentiu o frio da pequena mas por alguma razão não conseguiu desprender a atenção dos outros dois.

O mais baixo mostrava agora nas mãos o que antes não se conseguia ver, um pano escuro e baço que lhe fugia das mãos e que parecia envolver algo do tamanho de uma laranja. Ao deixar cair o pano revelou ao outro um objecto completamente negro. Aproveitando o desprender da menina, Binyamin aproximou-se e vislumbrou um objecto quase oval, coberto de placas semelhantes a escamas que lhe pareceram de obsidiana. Em determinados locais essas placas convergiam de forma a formar pequenos espinhos, reparou então que as mãos do rapaz mais baixo se encontravam repletas de cicatrizes recentes reflexo do seu profundo sentimento de cuidado e preocupação pelo objecto.

Binyamin recordaria sempre como o outro rapaz colocou as suas mãos junto às do primeiro e como juntos colocaram o objecto sobre a areia húmida. Binyamin percebeu que mesmo que as suas mãos estivessem livres de cicatrizes o objecto era igualmente dele. Juntos desprenderam-se de tudo.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Ausência de uma sombra

Dourado, castanho. A cor que temos na nossa imaginação, quando pensamos nas fotos que em pequenos vimos dos nossos avós jovens, aquele sépia amarelado pelos dias em que as rugas se instalaram. Sépia esse que prolongaria a vida.
É nessa cor que nos imagino. Juntos. Lado a lado, olhando em frente, preservados pelo enxofre, numa daquelas fotos que tirávamos uma vez por ano, em ocasião da visita do fotógrafo à vila. Estaríamos olhando sérios e fixamente a câmara, tentando ao máximo imortalizar a imagem de cada um. Nada revelaríamos. Quem hoje olhasse para a foto não saberia dizer porque nela apareceríamos juntos. Irmãos? Vizinhos cujas famílias tivessem juntado para poupar no investimento fotográfico? Se não soubesse gostava de pensar que era afilhado da tua mãe, ou o inverso, diverte-me pensar isso. Mas sei. E quando a tirámos, nesse momento de olhar perdido na grande objectiva, vendo o fotografo desaparecer numa sombra, soube, que um dia se voltasse a olhar a foto pensaria no dia em que te soube pela primeira vez.
Iria recordar quando entrei no teu quarto, não pela primeira vez, mas pela primeira vez em que realmente entrei, em que entrei só eu, e um eu completo, inteiro e pronto a perder-se. Tinha ficado tarde e fiquei para dormir. Quando sustive a respiração e empurrei a porta sentindo todos os ângulos das curvas talhadas na madeira, os meus pés no chão de tijoleira frio, vi o teu cabelo brilhar na luz pálida que já entrava pelas cortinas rendilhadas. Deitei-me, já dormias. Por vezes pensava ouvir-te, sentia-te acordado, mas estavas virado para o outro lado e não sabia. Acordei e estavas junto a mim, sem tocar, mas ali. Se me mexesse tocava-te, e como queria tocar... Estavas logo ali, junto a mim, a tua cabeça a rasar o meu peito. Demasiado perto naquela cama tão grande. Soube nesse dia que realmente te queria, e soube que se te tocasse te perdia. Ao acordar ficamos no silêncio, esperando.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Anjo

Dias depois de receber aquela carta soube que não estava sozinho na praia. Senti a sua presença na brisa do alvorecer mas não quis nem consegui voltar a fugir. Aconteceu uma tarde, quando me sentara a escrever diante da janela, enquanto esperava que o Sol mergulhasse no horizonte. Ouvi os passos sobre as tábuas de madeira que formavam o molhe e vi-o.
(...), vestido de branco, caminhava pelo molhe e trazia pela mão uma menina de uns sete ou oito anos. Reconheci imendiatamente a imagem, aquela velha fotogradia que Cristina guardara toda a vida sem saber de onde provinha. (...) aproximou-se do final do molhe e ajoelhou-se junto da menina. Comtemplaram juntos o sol que se derramava sobre o oceano numa infinita película de ouro cadente. Saí da cabana e avancei pelo molhe. Ao chegar ao fim, voltou-se e sorriu-me. Não havia ameaça nem rancor no seu rosto, apenas uma sombra de melancolia.
- Tive saudades suas(...) - disse - Tive saudades das nossas conversas, até das nossas pequenas discussões...

por Carlos Ruiz Zafón em "O Jogo do Anjo"